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terça-feira, novembro 16, 2010

A identidade lésbica

por Lúcia Facco

Por que você é “a lésbica” acima de todas as coisas?

Na semana passada aconteceu um fato que me deixou desapontada. Incrível como a sociedade ainda encara a homossexualidade de maneira tão incrivelmente preconceituosa.

Andei às voltas com um cãozinho que recolhi na rua. Ele estava doente, magro demais e o levei para a veterinária, onde está aguardando um adotante; com um filhote de pombo que achei caído do ninho e trouxe para casa para soltá-lo quando estiver voando (o que está quase acontecendo, felizmente); com os estudos do meu filho, em semana de provas na escola; com visitas diárias ao festival Anima Mundi, pelo qual nós aqui em casa somos aficcionados, mas o que mais me deixou marcada foi um post que coloquei em um tópico do Orkut.

Meu filho estuda na escola em que trabalho. Ele criou um tópico falando de algumas insatisfações dele com acontecimentos da escola. Daí, como era de se esperar, houve pessoas que concordaram e outras que discordaram de sua fala. Eu entrei na discussão e coloquei algumas opiniões. Para minha enorme surpresa, fui criticada (não no Orkut, mas no trabalho) por, em um dos posts, fazer uma “referência erótica”.

“Como assim? Você leu o post?” Perguntei à pessoa que me chamou a atenção. “Li por alto, mas deu para perceber que havia essa referência.” Ela respondeu.

Confesso que fiquei chocada, já que não havia absolutamente nenhuma referência erótica, pois não sou uma idiota irresponsável para fazer colocações eróticas quando a discussão não tem nada a ver com erotismo, e, muito menos, em uma discussão com adolescentes.

Fiquei pensando em como a pessoa em questão encontrou erotismo em um texto que falava de política educacional. É uma questão realmente curiosa, não? A única explicação que encontrei para tal interpretação é que algumas (muitas) pessoas, quando sabem da homossexualidade de alguém, sempre vão relacionar as atitudes desse alguém a sexo, libido, sacanagem, putaria.

Todos nós temos inúmeras identidades que se alternam, mudam, flutuam, de acordo com nossos momentos de vida e com as situações e ambientes nos quais nos encontramos. Se estou com a família, sou uma pessoa; no trabalho, sou outra, e por aí vai.

Mas a identidade homossexual parece ainda ser a mais marcante, a mais forte, que nos impregna e faz com que as pessoas nos vejam como “as lésbicas”, ou “os gays”. E, como no imaginário social, a homossexualidade está fortemente associada a sexo, de uma maneira diferente da heterossexualidade, parece que temos o estigma de sermos seres extremamente sexualizados.

Podemos constatar isso em várias situações que envolvem homossexuais. Nas Paradas do Orgulho LGBT, por exemplo, as maiores críticas sempre são: “Ah! É a maior putaria! Uma falta de respeito”. Se observarmos as micaretas ou blocos de carnaval, veremos tanta, ou até mais “putaria”, só que envolvendo casais heterossexuais. Mas aí ninguém faz referência a sexo, não é?

Não sei se já comentei isso aqui, mas, certa vez, falei com um colega sobre a história King and King, escrita por duas holandesas, para crianças. Essa história foi lida por um grupo de professoras a seus alunos, na Inglaterra (se bem me lembro) e alguns pais foram reclamar. A Direção da escola chamou a atenção das professoras por elas estarem dando aulas de “educação sexual” para as crianças, sem avisar aos pais com antecedência.

Para meu espanto, o meu colega concordou com a posição da Direção, ao que eu retruquei: “Ora essa, onde está a “educação sexual?” Na historinha não há sexo explícito, ela termina com o indefectível “E foram felizes para sempre…”, assim como a Branca de Neve, a Bela adormecida, a Cinderela e outras.

Ele disse que ok. Mas ficava implícito que eles fariam sexo. Perguntei: “Mas e as princesas? Elas, depois do casamento, não farão sexo com os príncipes?” Ele não teve resposta para isso.

Sempre me pergunto quando essas ideias se dissiparão e a sociedade deixará de nos sexualizar tanto? Isso, aliás, é um bocado irônico, em uma cultura em que as menininhas estão se vestindo de mulherzinhas cada vez mais cedo, usando meias arrastão, mini saias, botas de couro de cano alto (com salto); em que meninos e meninas namoram cada vez mais cedo; uma cultura em que crianças e adolescentes ouvem funks com letras pornográficas, aos berros e todos acham normal.

Isso é tudo muito estranho e muitas vezes eu tenho vontade de mandar parar o mundo para que eu possa descer. Mas depois eu reflito e acabo chegando à conclusão de que desistir não melhoraria o mundo em nada. O que precisamos é continuar, todos os dias, nesta dura tarefa de tentar fazer com que nos vejam como pessoas de mil faces, mil qualidades, mil defeitos, vivendo sob essa única imagem, essa máscara de ferro que a sociedade insiste em nos colocar: “@s homossexuais”.

Tudo bem. Afinal, quem disse que viver é fácil?

Fonte: Parada Lésbica